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Débora Munhys - Convidada homenageada 

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HOMENAGEADA 14ª CRASH

Débora Munhyz: da margem do cinema ao coração do terror

Corajosa, ousada, destemida. Todos que trabalharam com Débora Muniz (que nos últimos anos tem preferido ser chamada de Débora Munhyz) afirmam que ela é a atriz mais completa que já conheceram e só a tratam com superlativos. É elogiada tanto pelo profissionalismo – sempre pontual e com o texto devidamente decorado – quanto por seu talento único – a absoluta entrega aos papéis, a ponto de vivenciar plenamente suas personagens, e não ter restrições quanto ao que lhe pedem para fazer em cena.

A força avassaladora de Débora como atriz, musa e mulher encontrou seu veículo ideal quando ela fez o curta-metragem Amor só de mãe (2002), de Dennison Ramalho. O filme se tornou o maior representante de um horror extremo que preparou toda uma geração para o renovado cinema brasileiro de gênero. E o curta deve muito a Débora sua condição de objeto de culto, uma obra maligna e aterrorizante na qual a atriz se impõe com um desempenho arrebatador ao lado do igualmente gigante Everaldo Pontes – além da icônica participação de Vera Barreto Leite.

“Não há o que eu não tenha feito diante de uma câmera”, disse Débora a Dennison ao aceitar o desafiador papel que teria afugentado a maioria das atrizes sensatas. Graças à falta de juízo dela – nas palavras do próprio diretor – o horror nacional foi abrilhantado por uma performance inigualável como Formosa, uma mulher madura que namora um homem adulto que ainda mora com a mãe, uma idosa fanática religiosa, de quem a amante exige o coração como prova de amor. Essa (per)versão da canção “Coração Materno”, de Vicente Celestino, chocou e fascinou aficionados pelo horror e trouxe à atriz o prestígio que ela sempre mereceu.

Débora nasceu Maria das Neves, no sertão de Pernambuco, em meio a uma família de muitos irmãos, e se apaixonou por cinema depois de assistir Dio, come ti amo! (1966). Partiu para São Paulo ainda adolescente, por volta de 1975, decidida a se tornar estrela de cinema. Foi parar na escola de atuação de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, e acabou sendo escolhida pela atriz e cineasta Rosângela Maldonado para fazer o papel da jovem Débora em A mulher que põe a pomba no ar, que a veterana estrela estava produzindo com a ajuda de Mojica. Foi assim que Maria das Neves ganhou não apenas o papel de Débora, mas involuntariamente também o nome artístico. Todos passaram a chamá-la de “Débora” e o nome acabou sendo adotado.

Começou a atuar profissionalmente em 1977, quando fez o filme de Rosângela, lançado no ano seguinte, e apareceu em várias produções de Mojica, de quem se tornou praticamente a afilhada perfeita. Na época o cineasta buscava se afastar da imagem de Zé do Caixão e investiu em longas-metragens que, embora ainda trouxessem suas características brutais e transgressoras, retratavam outro tipo de terror. Débora tem um papel breve, porém significativo, em Perversão (filmado originalmente como Estupro! e lançado em janeiro de 1979), como uma jovem aspirante a atriz em busca de oportunidade no cinema. Em junho do mesmo ano foi lançado Mundo: Mercado do Sexo (Manchete de Jornal), também com pequena participação de Débora.

A situação mudou quando o sexo explícito começou a invadir as produções da Boca do Lixo, e praticamente todos os filmes feitos no polo mais popular do cinema nacional passaram a adotar esse conteúdo. Débora faz uma prostituta de luxo em A 5ª dimensão do sexo (1984), dirigido por Mojica, mas não participa das cenas explícitas (enxertadas depois do filme pronto). Porém, destemida como só ela, não se intimidou e logo entregou-se de corpo nu a esse cinema. Sua filmografia pornô é notável e inclui muitos dos maiores clássicos desse gênero – em uma época em que até nossa pornografia era feita com qualidade. A b… profunda (1984), de Álvaro de Moya, Oh! Rebuceteio (1984), de Cláudio Cunha, Borboletas e garanhões (1985), de Alfredo Sternheim, Gozo alucinante (1985), de Jean Garrett, e Senta no meu, que eu entro na tua (1985), de Ody Fraga, são apenas alguns dos títulos de destaque dessa peculiar fase.

A seguir levou para o teatro sua experiência com o sexo explícito, associando-se ao ator, escritor e produtor Ary Santiago para montar a peça pornô Clínica das taras, em 1984. O sucesso da empreitada motivou Ary e Débora a investir na versão em filme, criando a empresa Canaã Produções Cinematográficas. O velho amigo José Mojica Marins foi convidado para dirigir e aceitou com a condição de que rodassem dois filmes simultaneamente: a versão pornô, que se chamou O dr. Frank na clínica das taras, e um terror, intitulado As duas faces de um psicopata, com os mesmos técnicos e atores. Dr. Frank foi lançado em março de 1987, mas a versão terror nunca foi concluída e ainda aguarda ser montada e lançada.

Vinte anos se passaram até que Débora e Mojica voltassem a se encontrar nas telas (durante esse período ela atuou – de 1987 a 2006 – no espetáculo Noites do terror do parque de diversões PlayCenter). Foram dois projetos que resgataram o prestígio do cineasta e serviram como epitáfios dignos de sua carreira: o média-metragem A praga e o longa Encarnação do demônio. O primeiro foi filmado originalmente em 1980, em Super-8, mas a produção havia sido abandonada antes da fase de montagem e sonorização. Recuperado pela Heco Produções, de Eugênio Puppo, o filme teve que ser dublado por atores diferentes do elenco da época. Débora cedeu então sua voz à personagem Marina, interpretada por Sílvia Gless. O filme foi exibido em uma retrospectiva da obra de José Mojica Marins em 2007, e posteriormente escaneado em 4K e remontado para entrar no circuito de festivais em 2022.

A atriz é presença marcante também em Encarnação do demônio (2008), a tardia e muito aguardada conclusão da trilogia de Zé do Caixão, interpretando uma bruxa cega, ao lado de Helena Ignez, no histórico encontro da musa da Boca do Lixo com a musa do Cinema Marginal e Udigrúdi. Em uma das cenas mais brutais do filme, as duas são mortas e sangradas por Zé do Caixão, quando Mojica finalmente pôde contracenar com sua pupila favorita e a quem definia como “minha maior atriz”.

Débora Munhyz participa da mostra Crash 2022 como homenageada especial do evento, com exibição do redescoberto A praga e da obra-prima Amor só de mãe. Ainda em plena atividade, a atriz é protagonista da comédia de terror A noite das vampiras, com direção de Rubens Mello, outro discípulo do “Mestre” Mojica, que traz no elenco as musas Nicole Puzzi e Liz Marins, e ainda participações dos pioneiros do underground Petter Baiestorf e Cleiner Micceno. O filme está previsto para estrear no primeiro semestre de 2023 e promete reconhecer mais uma vez o talento, o carisma e a força de umas das maiores atrizes do nosso cinema de horror.

 

Carlos Primati

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